A promissora jovem economista e ex-colega de Fundação Getulio Vargas, Laura Carvalho, publicou hoje um artigo na Folha de S. Paulo cujo fito, intuo, era instigar o debate. A Folha tem a virtude, jornalística e comercial, de dar espaço a todas as matrizes ideológicas. Mas o artigo de Laura não contribui para quebrar o consenso que, creio, ela tem razão, obscurece a discussão em torno de saídas para o Brasil. A solução que ela propõe é analiticamente errada, empiricamente de fraca sustentação e normativamente representa a argentinização do Brasil – com todo o respeito que a República Argentina merece, inclusive por torcer pela seleção de futebol deste país.
Refuto ponto a ponto abaixo cada parágrafo do artigo – exceto dois – para depois explicar meu ponto.
Laura começa o artigo voltando a 2009, quando o então Presidente da República, homem prático e inteligente politicamente, colocou o país na luta contra a crise. Luiz Inácio Lula da Silva, e,a afirma, deu uma aula ao afirmar na TV a necessidade de confiar e consumir/investir. A jovem economista está certa. E, digo mais, a política econômica foi uma lição de fuga da armadilha da liquidez – lembrem-se que a Europa e os Estados Unidos caíram nela inicialmente. Contamos também com um ativo que foi fruto das reformas microeconômicas e de políticas sociais: a formação de uma classe média baixa ávida por consumo.
Mas depois, no desandar do artigo, ela manifesta os vícios dos nefelibatas – a sedução pela retórica literária mediana e por raciocínios parnasianos que negam a realidade. Afirma que o governo Dilma está a se dedicar a fazer a política errada, pois “o governo decidiu investir menos, incentivando as famílias e empresários a fazer o mesmo”. O problema é que a economia brasileira se recupera da crise e bate na fronteira de eficiência há mais de três anos. A insistência em uma política que faria Faoro reescrever Os Donos do Poder, com benefícios fiscais a empresas “de conteúdo nacional”; a tentativa infeliz de, com a poupança dos trabalhadores, criar as grandes multinacionais brasileiras; a persistência na política focada na demanda agregada e não no lado da oferta, levou o Brasil a ter famílias endividadas, inflação e populismo econômico para contê-la.
Laura sugere que “apesar dos erros na política econômica, o nível de dívida pública líquida, que era de 37% do PIB em 2011, hoje é de 34% do PIB. Esse patamar já foi de 60% no Brasil, em 2002, e é hoje de 170% na Grécia e de 50% na Alemanha”, como se houvesse base de comparação entre aparatos institucionais desses países! E depois vem a pérola do raciocínio macro que não aplica nem logaritmo de forma intuitiva: “a dívida bruta, que não desconta as reservas internacionais e outros ativos do governo, subiu nos últimos anos, é verdade, mas ainda nos mantem atrás da grande maioria dos países que conseguem se financiar no mercado de títulos”.
Keynes, do bom, ensina que expectativas e uma certa dose de irracionalidade micro fundamentam, por exemplo, dinâmicas Ponzi e aparatos institucionais diferentes, como o experimento natural da Grécia mostra, geram padrões de dependência distintos. Mais cedo, mais tarde, de forma desorganizada e descentralizada, o processo cognitivo de percepção de que aqui não é Alemanha – e a conta capital está aberta – leva a processos de crise cambial, inflação e/ou inadimplência de dívida. Uma coisa é o cálculo quase atuarial de uma trajetória de dívida exponencial; outra, como os agentes realizam isso no tempo e, em tomando suas decisões, transformam crenças em dura realidade. Falando português: os agentes podem até chamar urubu de meu loro por um tempo, mas depois vêm que o bichano não era aquele.
Na sequência, a economista afirma que “o governo ainda pode ajudar a superar a crise se contar, como em 2009, com a força do mercado interno e com sua capacidade de endividamento (…) Melhor seria endividar-se para preservar empregos e expandir investimentos em infraestrutura física e social”. Qualquer pessoa que tenha passado pelo governo sabe como o Estado brasileiro é paquidérmico e incapaz de investir. Getulio providenciou reforma do Estado para capacitá-lo, mas JK percebeu que se dependesse da máquina pública investimento nenhum seria feito. Por esta razão criou uma estrutura paralela ao Estado, por meio de grupos executivos, que tratou de implementar o investimento público do Plano de Metas. A Ditadura corretamente usou as estatais – não a administração direta – para planejar todo o setor elétrico, de petroquímica, telefonia e por aí vai. Mas era ditadura e, portanto, mais facinho de mandar, não é!? O PAC empacou por causa disso e da burocracia das licenças ambientais e da ação do Ministério Público que, por mais que deve-se revisar um pouco procedimentos, são “obstáculos” da Democracia. E há o medo do funcionário público assinar qualquer coisa, por causa do risco de parar em processos de corrupção.
Erra Laura em não observar que há tempos o investimento público é muito pequeno. Recado: não conte com o Estado, mas com a iniciativa privada para ter investimentos em infra-estrutura física. Mas para isso precisamos de…reformas microeconômicas. Sobre infraestrutura social, não se questiona que é necessária do ponto de vista de crescimento e desenvolvimento humano. Mas as políticas públicas devem ser objeto de reformas que avaliem sua eficácia, custo/benefício e gestão. Como se gastássemos pouco com benefícios sociais, segurança social e educação e saúde. Gastamos muito mal. Tanto no que se refere ao investimento em infraestrutura, como em infraestrutura humana, o problema é microeconômico, e não de “macro da gastança”.
Asserta, ainda, a economista: “Infelizmente os ideólogos de Chicago continuam a desdenhar da aula magna de economia que nos deu o operário ganhador de tantos títulos de doutor honoris causa mundo afora. Pior. Desprezam os gritos da realidade para os quais até simplórios manuais de autoajuda revelam-se mais úteis que seu cantochão ortodoxo.” Primeiro, não existe cantochão ortodoxo: há música boa ou ruim e, entre os economistas que não concordam com o populismo “ao modo Argentina”, há mais polifonia do que se imagina.
As propostas de Lisboa, Pessoa e Mansueto e de Marconi e Salto não são propriamente homogêneas. E cá entre nós, não se confunde análise positiva e normativa, ambas importantes, de forma tão primária. Por fim, a economista aparentemente tem como foco criticar – ao meu ver de forma deselegante – Levy. Entendo. Talvez ela esteja vislumbrando um quadro onde Levy saia, a governabilidade volte e a política econômica que virá com Dilma, a Fênix, será a que ela imagina, tipo Arrabal Amargo.
[Marcos Fernandes G. da Silva, Professor Adjunto Doutor da FGV/Eaesp, Coordenador do Núcleo de Analytics do Ifin/FGV (Instituto de Finanças) e Pesquisador FGV do supercomputador cognitivo Watson/IBM]