
Por Ana Luiza Aranha*
Quem se dedica ao estudo da corrupção sabe que encontrar, investigar e punir corruptos e corruptores requer ativar uma rede de instituições. Tomemos o Brasil como exemplo. Quando alguma instituição de controle encontra casos que poderiam ser de corrupção (suspeitam de algo), repassam os achados para órgãos que teriam a competência de iniciar processos investigativos — como Corregedoria, Ministério Público, Tribunal de Contas ou Ministério. Os órgãos investigativos, por sua vez, montam seus casos.
Aqueles cujas suspeitas se mostram fundadas têm processos administrativos ou judiciais abertos. Uma vez abertos os processos, devem ser julgados, e os responsáveis devem ser punidos. Seria a sequência esperada em um processo de accountability (processo de prestação de contas e de julgamento público dos governantes): do monitoramento para a investigação, para o julgamento.
Na agenda internacional, o combate à corrupção e a promoção da accountability andam de mãos dadas. Tanto é assim que a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas para a promoção do desenvolvimento sustentável inclui ambos no objetivo 16: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Este objetivo engloba tanto a meta 16.5, que visa reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas, como a meta 16.6, que visa desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis.
É possível dividirmos a accountability entre vertical (responsabilização de governantes perante a sociedade) e horizontal (práticas de prestação de contas entre os Poderes e entre governantes e burocratas). O quadro abaixo esboça a rede de instituições de accountability no Brasil de acordo com essas duas dimensões.
A tarefa central dessa rede não é controlar a corrupção. Sua tarefa democrática é muito mais ampla: dar transparência para as atividades do governo; estabelecer mecanismos de prestação de contas e julgamentos públicos. Ela seria a responsável por salvaguardar o interesse público: aquilo que nos rege enquanto sociedade política e que deveria pautar os governantes.
Estudar como essa rede funciona tem sido, pouco a pouco, tarefa de estudiosos da corrupção. Ainda de forma incipiente, alguns poucos estudos julgam analisar a rede, mas na verdade apenas estudam e descrevem cada uma das instituições de forma separada. Durante meu doutorado em Ciência Política na UFMG, me propus a estudar como as instituições de accountability federais brasileiras se articulam para controlar a corrupção. Não qualquer corrupção, mas especificamente a que ocorre no cotidiano das administrações municipais, quando estas têm que gerir o enorme montante de recursos federais repassados. Mas, ao invés de descrever como cada instituição atua, suas prerrogativas jurídicas e administrativa, demos um passo metodológico além. Resolvemos “testar” as interações.
Como “teste” para o surgimento das interações entre as instituições, escolhemos o então Programa de Sorteios da Controladoria-Geral da União, já famoso por selecionar aleatoriamente municipalidades e verificar as irregularidades encontradas em todos os programas nos quais havia transferência de recursos federais, incluindo aí programas de alimentação escolar (PNAE), Bolsa Família, recursos de convênios e repasses, dentre inúmeros outros. A CGU monitorava tudo o que havia sido repassado ao municípios nos dois anos anteriores à visita, elencava todas as irregularidades e, de forma inovadora, disponibilizava todos os achados publicamente no seu site. Ao final, enviava os relatórios para todas as outras instituições que poderiam se aventurar em abrir processos investigativos — por exemplo, os Ministérios responsáveis pelos programas, o Tribunal de Contas da União (TCU), ou mesmo o Ministério Público Federal (MPF).
Muito mais do que a análise dos normativos e regras formais que guiam essas instituições — sem dúvida importantes — a pesquisa queria mostrar na prática a realidade das instituições de accountability quando tem que enfrentar uma avalanche quase que diária de irregularidades. Os dados coletados englobam mais de dez anos de observações. Foram milhares de irregularidades e seus processos seguidos ao longo do tempo, fluindo de uma instituição para a outra — o foco foram seis instituições centrais na agenda brasileira anticorrupção (CGU, TCU, Ministérios, PF, MPF e JF).
Em primeiro lugar, é preciso pontuar a necessidade das próprias instituições da rede exercerem esse tipo de monitoramento: saber o que acontece com seus relatórios ou processos, uma vez que entram em outras instituições. Foi enormemente difícil traçar o que aconteceu com as irregularidades encontradas pela CGU nas outras instituições da rede: os números de processos se alteram, os descritivos/resumos dos processos não permitiam termos certeza se aquele processo vinha de achados dos Sorteios e ainda algumas instituições recusaram fornecer dados (requeridos através da Lei de Acesso à Informação). Se a própria rede não sabe o quanto atua de forma coordenada e onde estão os buracos, fica ainda mais difícil buscar qualquer tipo de atuação em conjunto.
Ao menos no que diz respeito ao programa de sorteios, de alguma forma as instituições de accountability interagem, apesar de que as interações não estão homogeneamente distribuídas na rede. O campo jurídico (em especial a atuação do MPF) é muito mais ativo do que o administrativo (TCU e Ministérios) em termos de quantidade de irregularidades investigadas, e os processos de improbidade administrativa predominam em comparação aos criminais. Apesar das sanções serem raras de uma forma geral, o campo administrativo é mais lento para começar as investigações e para processar as irregularidades internamente, mas sua eficiência é maior se medida em termos de capacidade de sentenciamento (se comparada com a baixa taxa de sentenças da Justiça Federal).
A CGU montou uma estratégia para monitorar os governos locais que vinha sendo muito aproveitada pelos procuradores e policiais, mas criticada pelo TCU. É possível, porém, identificar que as críticas, quando bem direcionadas, mudam de maneira proveitosa os trabalhos das demais. Nesse sentido, pode-se pensar que são necessários checks and balances dentro da própria rede — de acordo com um dos mais de 60 entrevistados, foi a partir de uma crítica feita pelo TCU que a CGU pode aperfeiçoar seus relatórios de um ponto de vista mais proveitoso para o campo administrativo.
O equilíbrio dentro da rede é necessário, inclusive para que nenhuma instituição se sinta melhor que as demais — como ocorre às vezes com a ideia difundida entre os procuradores de que as demais trabalham para o Ministério Público (e não com ele).
Em termos de arquitetura institucional, é necessário não apenas fortalecer as instituições individualmente, mas melhorar a rede, trazendo outros órgãos como a Receita Federal, o COAF, o CADE, os bancos, a AGU, os gestores, a sociedade civil e tantos outros para o diálogo, criando uma consciência de que cada um tem a sua contribuição a dar, seja na prevenção, investigação ou sanção da corrupção.
Além do mais, é importante que as instituições estejam coordenadas internamente. Muito tem sido falado sobre o MPF e o alto grau de autonomia dos seus procuradores, mas pouco é mencionado a respeito das grandes divergências internas presentes no próprio TCU em termos básicos como, por exemplo, a prioridade que a corrupção tem para a instituição.
Em suma, para realização da accountability e todas as suas fases, as instituições precisam interagir. O primeiro passo dessa interação é a atenção dada às informações que chegam das outras instituições da rede, que podem gerar processos investigativos ou até mesmo sanções. As informações levantadas por cada instituição são cruciais, tanto para serem trocadas entre elas, quanto para empoderar o julgamento feito pelos cidadãos. Ou seja, não basta construirmos fortes instituições de accountability ou mesmo um superministério de controle. É preciso que nos engajemos enquanto cidadãos nos processos de controle e responsabilização, mobilizando as justificativas de nossos governantes e os julgando publicamente. A rede não estará completa sem o elemento social da accountability.
Convivemos hoje com uma exposição demasiada da corrupção na mídia, que nos torna praticamente histéricos em relação ao tema. O que há de tão diferente em relação ao início da nossa redemocratização é que, pela primeira vez, a corrupção é trazida de forma contundente a público, e são estabelecidas tentativas de se responsabilizá-la. O problema é a personalização, achar que isso vem de um partido, ou de um grupo político específico, ou mesmo que esse fenômeno só pertença à classe política, ou que pode ser eliminado apenas com sanções mais severas. Ele está intrincado na nossa forma de governar, em todas as esferas, descendo até as relações sociais, e requer soluções sistêmicas.
Mais do que pensar o combate à corrupção como algo intrinsecamente ligado a promoção da accountability — como o faz a Agenda 2030 da ONU — precisamos conectar ambos com a promoção de instituições articuladas em rede, inclusive internacionalmente. Como nos mostram os atuais casos de lavagem de dinheiro e uso de paraísos fiscais — Panama Papers é apenas um dos pontos de destaque — ou mesmo a extensão dos achados da Lava Jato pela América Latina, o combate à corrupção só tem a ganhar com instituições coordenadas nacional e globalmente.
Texto publicado originalmente no site Jota.
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ANA LUIZA ARANHA — Doutora (2015) e Mestre (2011) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV) e Professora na Fundação Getúlio Vargas. Colabora com institutos de pesquisa internacionais como a Transparency International (Alemanha) e International Anti-Corruption Academy (Áustria).